Redes Sociais

A indústria da desinformação e o papel das plataformas nos ataques à democracia brasileira

Diante dos atos de golpe de 8 de janeiro no Brasil, qual o papel e a responsabilidade das plataformas digitais em situações de crise democrática como a ocorrida no Brasil em 8 de janeiro?

CC:BY (Gilda Martini)

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No dia 08 de janeiro, o Brasil viveu cenas de terrorismo e violência com os atos golpistas que atentaram ao patrimônio público e à democracia perpetrados por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro em Brasília. Como ainda está sendo apurado pelas investigações, há indícios de falhas graves – e possivelmente até de leniência e prevaricação – na atuação de autoridades responsáveis pela inteligência e pela segurança dos prédios dos três poderes da República, uma vez que não teriam previsto tampouco se preparado para a dimensão dos ataques, que já estava sendo aos poucos articulado nas semanas anteriores.

Segundo apurações do Desinformante, os ataques foram convocados por redes sociais e em grupos em aplicativos de mensagem. Ao longo de toda a semana anterior aos atos golpistas, grupos e canais bolsonaristas divulgaram chamadas “com tudo pago” para atrair manifestantes em Brasília. De acordo com uma apuração da Agência Pública, bolsonaristas utilizaram o código “Festa de Selma”, expressão cunhada por Steven Bannon que faz alusão à Selva, termo usado por militares, para combinar as últimas etapas da invasão da Praça dos Três Poderes. Como mostra a apuração, a expressão estava sendo usada há dias pelos bolsonaristas livremente em redes sociais abertas como o Twitter.

Além disso, enquanto destruíam o patrimônio público e invadiam os prédios da República, os terroristas fotografaram, filmaram e transmitiram ao vivo seus atos de violência em plataformas como Facebook, Instagram e Youtube. Foi somente após a decisão da Suprema Corte de suspender perfis de manifestantes golpistas que veio a ação das plataformas. Como concluiu um relatório da SumofUs, assim como o episódio no Capitólio dos EUA em 06 de janeiro de 2021, as plataformas digitais facilitaram os ataques terroristas, permitindo que conteúdos extremistas fossem amplamente compartilhados ao longo de meses, bem como que esses conteúdos pró-golpe fossem ativamente recomendados por seus algoritmos a usuários, incluindo chamadas explícitas à violência.

Diante disso, uma questão que se torna urgente no âmbito das discussões sobre direitos digitais: qual é o papel e a responsabilidade das plataformas digitais em situações de crise democrática como as que aconteceram no Brasil no último 08 de janeiro?

O contexto tecnopolítico dos ataques golpistas e o negacionismo eleitoral de Bolsonaro

Há anos, o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores vinham fazendo campanhas contra as urnas eletrônicas, questionando a integridade eleitoral e fortalecendo uma narrativa de fraude. Segundo o relatório “Desinformação on-line e contestação das eleições: quinze meses de postagens sobre fraude nas urnas eletrônicas e voto impresso auditável no Facebook“, produzido pelo projeto Democracia Digital, uma iniciativa da FGV ECMI, “entre novembro de 2020 e janeiro de 2022, foram localizadas 394.370 postagens sobre fraude nas urnas eletrônicas e voto impresso auditável, publicadas por 27.840 contas, entre páginas, perfis pessoais e grupos públicos”. Entre as doze contas que concentram o maior volume de interações (a partir de 1 milhão cada) nas postagens no Facebook sobre fraude nas urnas e voto impresso, o perfil oficial de Jair Bolsonaro é um dos seus principais porta-vozes, junto com outros representantes eleitos apoiadores dele, diz o estudo.

Os ataques às urnas e o discurso de fraude eleitoral não foram fomentados somente nas declarações do ex-presidente e de seus apoiadores em redes sociais. Houve a efetiva tentativa de aprovar uma emenda à Constituição (PEC 135/2019) para instaurar “a expedição de cédulas físicas”, que ficou conhecida como a PEC do Voto Impresso-, mas que foi derrotada pelo plenário da Câmara dos Deputados em agosto de 2021.

Em suma, o negacionismo eleitoral de Bolsonaro estava sendo alimentado há tempos em suas declarações e ações, que também foi estimulado por uma indústria da desinformação ligada aos seus apoiadores, utilizando as plataformas digitais como principal meio para produção e circulação destas narrativas. Como mostrou estudos do NetLab/UFRJ e um experimento da GlobalWitness, durante o período eleitoral, o sistema de anúncios da Meta falhou em detectar o impulsionamento de conteúdos de desinformação que atacavam a integridade das eleições brasileiras de 2022.

Em 2022, mais de 100 entidades da sociedade civil e da academia se juntaram na campanha “Democracia Pede Socorro” e publicaram um relatório e dois balanços com alertas e recomendações sobre o papel das plataformas digitais na proteção da integridade eleitoral brasileira. Entre os pontos de destaque, as entidades chamam atenção que a proteção da integridade eleitoral deve ser incorporada como um valor refletido nas políticas de moderação de conteúdo e em seus termos de uso que não devem estar restritos ao período eleitoral. Além da adequação de suas políticas ao contexto brasileiro, as plataformas deveriam estabelecer protocolos de gerenciamento de eventuais crises institucionais de grande porte para eventos como aquele que aconteceram no dia 08 de janeiro. Outro ponto destacado nas recomendações é que as plataformas não devem permitir a veiculação de conteúdos com alegação infundada de fraude eleitoral ou ataque à integridade eleitoral, tampouco manifestações infundadas de questionamento ao resultado eleitoral após a divulgação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Apesar dos ataques bolsonaristas ao processo eleitoral, no dia 30 de outubro de 2022, ele foi derrotado nas urnas. Desde o fim das eleições, apoiadores de Bolsonaro contestaram o resultado das urnas, clamaram por um golpe de estado, fizeram bloqueios de estradas, ocuparam a porta dos quartéis e invocaram a intervenção das forças armadas para reverter o resultado das urnas, o que, por sua vez, culminou nos ataques do dia 08 de janeiro.

Democracia e plataformas digitais

Embora um episódio complexo como o lamentável 08 de janeiro esteja associado a diferentes aspectos sociais, históricos, políticos e conjunturais, os ataques golpistas em Brasília nos revela também a insuficiência das políticas atuais das plataformas para impedir mobilizações antidemocráticas através suas redes sociais e/ou aplicativos de mensageria, bem como na contenção da difusão de conteúdos de desinformação relacionados à integridade eleitoral. A articulação golpista através das plataformas é, em parte, um dos efeitos de anos de campanhas de desinformação perpetrados por uma indústria de propaganda, produzindo e difundindo notícias falsas, teorias conspiratórias e discurso de ódio em redes sociais, que foi, aos poucos, contribuindo para a polarização da sociedade brasileira e a radicalização da extrema-direita.

Reconhecer o papel das plataformas na crise da democracia brasileira não implica atribuir uma causalidade direta entre a intentona golpista e a governança das plataformas, mas sim entender a centralidade das big techs na mediação da comunicação política atual. Para evitar novos ataques a outras democracias em outros contextos, discutir a responsabilidade das plataformas é fundamental nos debates sobre regulação de plataformas no Brasil e em toda a América Latina para que possamos garantir mecanismos mais efetivos contra a desinformação, protocolos específicos e mais consistentes de enfrentamento de processos eleitorais e crises institucionais, bem como mais transparência e fiscalização por parte da sociedade civil.

*Exemplo de mensagens que circularam no Telegram https://desinformante.com.br/atos-antidemocraticos-redes-sociais/

*Convocação aos atos golpistas em rede social usando o código “Festa de Selma” https://apublica.org/sentinela/2023/01/bolsonaristas-usam-codigo-festa-da-selma-para-coordenar-invasao-em-brasilia/

*Anna Bentes é professora adjunta e pesquisadora na Escola de Comunicação, Mídia e Informação de la Fundación Gertúlio Vargas no Brasil e atualmente atua como pesquisadora visitante na Derechos Digitales analisando a disseminaçao de desinformaçao no contexto eleitoral brasileiro. É membro do Conselho da Rede Lavits.