Quando o COVID-19 nos obriga a isolar-nos socialmente para proteger a saúde de todas e todos, surge a legítima pergunta de como a tecnologia pode ajudar em um combate mais efetivo da pandemia. Desde a aceleração da telemedicina à previsão de riscos de contágio, controle do isolamento involuntário, eficiência na distribuição das prioridades de teste, a tecnologia parece oferecer um leque atraente de soluções. No entanto, se a crise é nova para a humanidade em seus desafios, a resposta deve vir de uma experiência acumulada em séculos de excessos e desacertos.
Necessidade, adequação e proporcionalidade na resposta tecnológica é o que separa uma crise de saúde global de uma renúncia aos direitos fundamentais, tecido básico de sociedades como as nossas que derramaram sangue e história por escapar do autoritarismo e garantir uma vida digna para todos. As tecnologias de informação podem ter um papel coadjuvante no monitoramento e controle da pandemia, mas sua implementação irresponsável pode ter impactos negativos no exercício dos direitos humanos, particularmente a privacidade, o direito à integridade física e psíquica, o direito a não ser discriminado arbitrariamente (no âmbito das relações de trabalho, saúde, previdência social e acesso a benefícios sociais). Isso lembraram, no último dia 16 de março, especialistas em direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), destacando que os Estados não devem abusar das medidas de emergência para violar direitos humanos: “se bem reconhecemos a gravidade da atual crise de saúde e que o direito internacional permite o uso de poderes de emergência em resposta a ameaças significativas, lembramos urgentemente que aos Estados que qualquer resposta de emergência ao coronavirus deve ser proporcional, necessária e não discriminatória”.
A necessidade extraordinária nesse caso está representada pela própria emergência sanitária e que ameaça não só a saúde pública, mas também a estabilidade econômica e social. Situação particularmente certa nos países da América Latina, que possuem altos níveis de precariedade laboral representados por indústrias extrativistas e trabalho informal baseado em ingressos diários.
Enquanto à adequação do sistema que se proponha, o que tipicamente separa as boas e as más ideias é a capacidade de formular perguntas rigorosas e contextuais sobre a idoneidade dos sistemas para alcançar os objetivos propostos e um desenho que incorpore a experiência médica, as instituições de saúde e os enfoques científicos desenvolvidos para aumentar o que se sabe que funciona – ao invés de excluí-los ou desafiar a confiança da população neles. Os sistemas que se desenvolvam devem encontrar-se à serviço da resposta médica e do uso proporcional de controles sociais para limitar a transmissão. A tecnologia sozinha não é efetiva se não está acompanhada de contextos de governança institucional que garantam o cumprimento de seus objetivos.
A credibilidade das instituições de saúde pública joga um papel importante no êxito da mudança de comportamento e resposta que possa ser desenvolvida durante a pandemia. Desenvolvimentos tecnológicos que prescindam ou questionem essa resposta coordenada podem ser contraproducentes para seu combate. Um efeito não desejado de intervir com tecnologias é gerar confusão ou uma falsa segurança na população sobre sua capacidade de realizar um controle efetivo, conduzindo ao relaxamento de outras medidas mais estritas. O último que desejaríamos em meio a uma pandemia é que as instituições de saúde pública tenham que competir pela legitimidade seja com outros órgãos do Estado, seja com terceiros intermediários das tecnologias oferecidas.
O objetivo não é evitar o uso da tecnologia, mas garantir que qualquer sistema digital que se desenvolva parta de critérios médicos que se sabe que funcionam – ao menos em circunstâncias limitadas com base em experiências prévias de resposta específica – e seja implementado de forma bem institucionalizada para causar aumentos marginais na capacidade de combater a pandemia.
A experiência internacional
O uso de tecnologias de vigilância pré-estabelecidas, como no caso da China, Irã e Israel, resulta particularmente problemático. A emergência não pode servir como desculpa para o aprofundamento de sistemas de controle social implementados de maneira obscura e sem mecanismos de prestação de contas. Nem a pandemia pode ser usada para limpar sua imagem e permitir que esses sistemas sobrevivam à crise com uma nova justificativa autoritária.
Além disso, é preciso considerar que os países citados como exemplos de sucesso na contenção da pandemia até o momento (China, Coreia do Sul, Singapura e Taiwan) realizaram grandes investimentos em sua capacidade de teste, infraestrutura de resposta e disponibilização de informação confiável de forma coordenada – elementos considerados componentes centrais de uma resposta efetiva por especialistas. O componente digital oferece somente uma fração do anterior e, por exemplo, no caso da Coreia, o lançamento da Self-quarantine Safety Protection App a partir de 7 de março de 2020, ocorre quando as principais medidas de contenção por meio de testes massivos e isolamento de indivíduos e grupos infectados já se encontravam implementadas e a expansão da pandemia já mostrava sinais relevantes de contenção.
Uma reflexão é necessária em relação à adequação da geolocalização como tecnologia para o combate efetivo da pandemia: relatórios de especialistas indicam que seu papel parece ser muito menor do que o atribuído por otimistas tecnológicos. As torres de celular utilizadas pela telefonia móvel carecem da granularidade exigida para monitorar contatos de 2 ou 3 metros como os necessários para o contágio do COVID-19; o mesmo ocorre com pessoas que se conectam a uma mesma rede WiFi. Um pouco mais precisas – em determinadas condições – são as redes de Bluetooth (usadas por exemplo em Singapura). Os sinais de GPS oferecem mais precisão, mas só funcionam bem no exterior, de modo que podem determinar se duas pessoas estiveram em um mesmo edifício, mas não a distância que estiveram uma da outra.
Aproximações menos invasivas para o exercício de direitos podem ser adotadas aproveitando o poder dos dados agregados para o combate à pandemia. Esse é o tipo de trabalho que operadores de telefonia tem desenvolvido na Europa em países como Alemanha, Áustria, França e Itália. Na Espanha, algumas ofereceram suas capacidades de big data e gestão de dados anonimizados e agregados de sua rede, dados de mobilidade, centros de processamento de dados na nuvem, assim como capacidades de atenção telefônica ou digital para conter a expansão da pandemia. E a autoridade de proteção de dados da União Europeia, destaca a esse respeito que “as regras de proteção de dados não impedem as medidas tomadas contra a pandemia do coronavirus”, mas enfatiza que “mesmo nesses momentos excepcionais, o controlador de bases de dados deve garantir a proteção de dados pessoais de seus titulares”.
A mais recente iniciativa apresentada nesse sentido se trata de um sistema em desenvolvimento na Alemanha, com vistas à expansão para toda a Europa, que busca preservar a privacidade da informação ao mesmo tempo em que oferece uma ferramenta tecnológica útil para o controle da pandemia. Seu princípio de funcionamento é traçar a proximidade de casos comprovados de contágios não por meio de dados de geolocalização, mas medindo a proximidade em uma rede Bluetooth. Se trata de uma app de uso voluntário que gera um identificador único armazenado de forma criptografada localmente nos dispositivos. Informações sobre o contato próximo com outros dispositivos também ficam armazenadas no dispositivo das pessoas que a instalarem de modo que, quando se confirme um caso de COVID-19 nessa rede de proximidade, os membros receberão um alerta. A partir daí o usuário tem duas opções: entregar seus dados criptografados para análise científica do caso ou pedir acesso a um teste e iniciar as medidas de quarentena caso o resultado seja positivo. Essa tecnologia deve ser implementada de forma interoperável na Europa no mês de abril com interfaces de usuário a nível nacional e com informações de diagnóstico armazenadas por cada autoridade de saúde nacional.
Proporcionalidade
Uma vez avaliadas as implicações de adequação da tecnologia, cabe a ponderação sobre a proporcionalidade do seu uso frente à afetação de diferentes direitos. Isso implica considerar as regulações que limitem os prazos das faculdades extraordinárias, que o sujeitem às condições específicas da emergência para que não se estendam de maneira descontrolada e indefinida.
É necessário traçar uma distinção – mesmo que às vezes isso seja um exercício difícil – entre “vigilância de expansão do vírus” e “vigilância das pessoas” que são portadoras dele. Por que isso é importante? Por conta da análise de proporcionalidade no desenho, uma vez que a informação a que se deve ter ter acesso excepcional – do ponto de vista das regras gerais de privacidade – deve limitar-se ao que é cientificamente razoável para frear a expansão do vírus, e não gerar uma narrativa extensiva sobre a vida dos pacientes e de seu círculo de contatos. Deve tratar-se de um sistema de vigilância epidemiológico com base científica sólida, não da implementação de m sistema de controle da autonomia dos cidadãos que possa ser facilmente reconduzido a outros propósitos de controle com posterioridade.
Por isso não é possível se gerar uma autorização excepcional de acesso e uso de dados pessoais sem dar visibilidade dos critérios preditivos que serão usados para obter modelos de intervenção a partir dos dados aos quais se deseja o acesso. Sem ter acesso a essa caixa preta não há forma de entender a equidade (ou falta dela) subjacente à adequação da ferramenta ou de poder se pronunciar sobre a legitimidade da intervenção em função da proporcionalidade da afetação que implica um acesso irrestrito a bases dados pessoais e sensíveis de todos os cidadãos e cidadãs.
Não é novo o reconhecimento de que os direitos fundamentais não se propõem como imperativos absolutos, mas como exercícios de ponderação. Daí a necessidade de que qualquer restrição que se adote seja proporcional e não afete a essência do direito afetado. Esse balanço depende de salvaguardas em sua autorização que devem estar previstas em normas legais, já que esse é o instrumento democrático que permite equilibrar com transparência os diferentes direitos em jogo.
Assim, uma legislação de emergência no contexto do COVID-19 que busque autorizar de forma extraordinária o acesso a dados sensíveis sobre a saúde das pessoas (estar infectado, sintomas, monitoramento do tratamento, entre outros) ou a outros dados pessoais (geolocalização, contatos próximos, agenda de contato, entre outros) por parte de diferentes serviços públicos ou provedores privados por meio de tecnologias demandaria dos seguintes componentes:
- Caracterizar de forma estrita a situação de emergência e/ou o prazo que habilita o acesso aos dados pessoais e sensíveis de saúde nas mãos dos diferentes órgãos do Estado;
- Especificar quem estará a cargo do acesso extraordinário a tais dados;
- Detalhar quais são e como se utilizarão os dados solicitados de forma extraordinária;
- Estabelecer provisões de término do acesso e uso extraordinário dos dados com medidas efetivas de controle de acesso ou eliminação;
- Ordenar medidas específicas de segurança operacional para evitar acesso e uso malicioso dos dados, e
- Estabelecer mecanismos de controle externo e prestação de contas que permitam fiscalizar e sancionar fortemente o desvio de finalidade no acesso e uso dos dados visando proteger os titulares de dados de futura discriminação arbitrária em termos trabalhistas, de saúde, previdência ou benefícios sociais por parte do Estado ou de agentes privados por terem sido portadores do COVID-19.
O uso de dados associados à expansão da pandemia COVID-19 deve se fazer sob técnicas de pseudonimização ou dissociação (com algoritmos de anonimização suficientemente robustos) quando se trate de oferecer informação publicamente disponíveis, além de ter a segurança como requisito indispensável, incluindo o tráfego criptografado da informação e seu armazenamento seguro e resiliente.
A rápida ação para enfrentar a expansão do COVID-19 requer medidas excepcionais, mas que não podem ser levadas a cabo violando os pilares de um Estado democrático regido pela regra do direito. O combate a uma pandemia não é e nem pode ser oposto ao respeito aos direitos fundamentais ou uma porta ao autoritarismo que nosso continente lutou e luta fortemente por combater.
Más ideias seguem sendo más em tempos de pandemia e este é um péssimo momento para se experimentar com direitos fundamentais de que tanto vamos precisar quando acabe a emergência para construir sociedades mais justas e solidárias que nos permitam superar as deficiências estruturais que exacerbam as desigualdades na nossa região. Desta saímos todos juntos e com nossos direitos intactos.