Diante do avanço do COVID-19 na América Latina, vários países decretaram quarentena educativa e implementaram medidas para garantir que os estudantes possam continuar seus processos de aprendizagem. A Unesco identificou dezenas de respostas educativas na região que vão desde a disponibilização de contúdos online, até a autorização para a realização de cursos formais à distância.
Não há dúvidas de que o acesso à informação e ao conhecimento é fundamental durante e depois de uma crise como a que representa o COVID-19, mas é necessário persarmos sobre qual será o impacto real das medidas implementadas e seus efeitos a médio e longo prazo.
Limites estruturais
Existem alguns aspectos estruturais que devem ser considerados na análise de quão efetivas podem ser as respostas educativas baseadas na oferta de conteúdos online ou aulas virtuais. Na camada de infraestrutura e conectividade se encontram as desigualdades de acesso à Internet, requisito fundamental para qualquer estratégia de ensino online. Até 2016, menos da metade dos lares latino-americanos estavam conectados à rede mundial de computadores, de acordo com dados da CEPAL. Se consideramos os contextos nacionais, países como El Salvador e Nicarágua seguian com menos de 20% de seus domicílios conectados em 2017. O avanço do acesso a redes móveis certamente influi nesse cenário nos últimos anos, mas em muitos casos ele se dá por meio de planos de dados limitados que não permitem o download de arquivos ou vídeos de maneira livre, por exemplo.
Em relação ao hardware, temos que considerar que diferentes tipos de dispositivos implicam em diferentes possibilidades de uso educacional. O acesso a computadores segue limitado na região e em alguns países vem decaindo nos últimos anos, enquanto aumenta o número de pessoas que acessam a rede apenas pelo celular, especialmente entre as classes mais baixas. Apesar do aumento nas taxas de acesso a smartphones, eles não estão desenhados para facilitar a leitura de textos longos ou muito menos para elaboração ou edição de textos. Além disso, estudos apontam que seu uso por longos períodos de tempo podem impactar na saúde de crianças e jovens.
Quando se trata do software, observamos uma crescente tendência ao uso de ferramentas comerciais cujos modelos de negócio se baseiam na coleta de uma enorme quantidade de dados para fins de publicidade. Uma pesquisa desenvolvida no Brasil com apoio do Fundo de Resposta Rápida para a Proteção de Direitos Digitais na América Latina (FRR), mostra que 65% das universidades e secretarias de educação brasileiras utilizam serviços de empresas como Google e Microsoft sem medidas específicas de transparência sobre as condições de proteção de dados e informação de milhares de professores e estudantes. Também no Brasil, enquetes com professores da educação básica indicam uma adesão a serviços comerciais como Facebook e WhatsApp para a comunicação com estudantes, envio de materiais e preparação de aulas sem maiores considerações sobre seus impactos à privacidade de crianças e adolescentes.
Finalmente, quando na camada de conteúdos, as limtações jurídicas – impostas por restrições presentes nas leis de direitos autorais – e técnicas ao acesso podem se converter em uma barreira adicional para o aprendizado online.
É importante lembrar que a brecha digital tem diferentes níveis. Além da disponibilidade de conexão e equipamentos, são necessárias uma série de habilidades para utilizar as tecnologias para a pesquisa e aprendizagem – e elas também se encontram destribuídas de forma desigual na América Latina.
Uma emergência social
Enquanto as estratégias consideradas efetivas para o combate ao coronavirus na Ásia e Europa passam pelo isolamento da população, na América Latina está o desafio de conter seu avanço em regiões onde predominam habitações precárias, há escasso acesso à água e ao saneamento básico ou onde, basicamente, é o Estado que se encontra ausente.
O fechamento de escolas pode ser particularmente daninho nos lugares onde elas são as principais responsáveis por oferecer alimentação e água potável. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 85 milhões de crianças se beneficia com a alimentação escolar na América Latina e Caribe, sendo que para 10 milhões essa é sua fonte primária de alimentos saudáveis.
Para os jovens e adultos matriculados no ensino básico ou superior o período de quarentena pode implicar no acúmulo de tarefas e preocupações diversas, como recorda a professora da Universidade de Arkansas Rebecca Barrett-Fox. Algumas pessoas terão que seguir trabalhando e desempenhando funções mais exigentes – como os trabalhadores e trabalhadoras da saúde, limpeza, segurança, transporte, entre outras. Outras podem perder seus empregos ou fontes de ingresso durante a crise. Muitas terão que assumir o cuidado integral de seus filhos e filhas, pessoas idosas ou de grupos de risco, por vezes ao mesmo tempo em que se mantém trabalhando à distância.
A situação é particularmente crítica para as mulheres, que além de estarem pressionadas a assumir o papel do cuidado, muitas vezes mantém trabalhos precários para sustentar economicamente seus lares. Elas também estarão ainda mais sujeitas a altos níveis de estresse e violência durante a crise, o que agrava a situação já preocupante vivida em alguns países da região nesse sentido.
Não geremos mais desigualdades
As novas tecnologias oferecem oportunidades de acesso a uma infinidade de fontes de informação e conhecimento que são fundamentais em um contexto de pandemia como o atual. No entanto, é necessário compreender as especificidades do contexto regional ao propor estratégias educativas nesse período particularmente crítico.
Ainda que seja importante pensar em medidas que busquem oferecer oportunidades de aprendizado a jovens e crianças em quarentena, tudo que indica que boa parte deles enfrentará situações sérias que afetarão sua capacidade de participar do sistema educativo, ainda mais quando se espera que o ensino ocorra online.
Autorizar a implementação da educação a distância para substituir aulas presenciais nesse momento é autorizar um processo de precarização. Ao invés de garantir o direito à educação, este tipo de ação – iniciada em alguns países da região com foco em instituições do ensino superior – pode agravar ainda mais as condições das pessoas que sofrerão de forma aguda os impactos sociais do coronavirus e aprofundar as desigualdades existentes no continente.