#MarzoFeminista

A linguagem comum das mulheres e uma outra Internet

“Uma cultura de dominação é anti-amor. Exige violência para se sustentar. Escolher o amor é ir contra os valores predominantes dessa cultura” — bell hooks.

CC-BY ( Imagens Portal SESCSP) NC-ND

As histórias das ditaduras que avançaram e assolaram a América Latina no século XX permearam o imaginário dos estudantes por muitas décadas. Como parte da parcela que cresceu nos anos 90, cresci lendo livros, assistindo aulas e vendo filmes sobre o tema. A ditadura chilena que findou nos anos 90, assim como a luta pela educação, marcaram imaginários de luta e resistência. A América do Sul, além de palco de ditaduras, também foi cenário de uma sangrenta colonização, que até os dias atuais deixam rastros geográficos e socioeconômicos que permeiam a maneira como lidamos com nossa sociabilidade, e dispositivos eletrônicas e a Internet. No entanto, esforços locais lutam para transformar a barreira e educação tecnológica, esforços feministas trabalham para uma outra infraestrutura feminista. Mas qual as bases dessa infraestrutura que temos hoje, o que ela têm a ver com a cultura de dominação, e o que buscamos transformar nisso?

Em duros tempos de ditadura, famílias foram devastadas, pessoas desaparecidas, violências acometeram os corpos de quem resistiu, livros foram queimados, e a vida dentro de casa já não era mais a mesma. No Chile, enquanto mulheres que perderam parte de seus entes na resistência buscavam alternativas para alimentar suas casas, aproveitavam a oportunidade para também contar suas histórias, e denunciar as violências que acometia seu país. As alpilleras foi uma técnica bastante utilizada no período pelas mulheres, em que teciam mensagens nos sacos de arroz para denunciar os horrores da ditadura, e com sua venda, sustentavam e alimentavam suas famílias.

Em todo o mundo, as mulheres buscam dentro de suas tecnologias possíveis, alternativas para seu sustento, para fazer suas vozes serem ouvidas, e suas mensagens transmitidas. A técnica das alpilleras também tem sido utilizada em movimentos de resistência no Brasil, como no caso do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), com a afirmação “Mulheres, água e energia não são mercadoria”, as alpilleras do MAB “bordam a resistência”, e contam sua história.

Foi também no final das ditaduras latino-americanas que os cabos submarinos passaram a ser alto investimento internacional como finalidade de telecomunicação entre computadores, formando a grande rede de Internet que temos até os dias atuais. No século e décadas anteriores, os cabos submarinos eram usados para as comunicações de telégrafo.

Hoje, os cabos de fibra ótica submarinos transmitem mais de 90% da Internet do mundo. Eles foram construídos sob uma política de guerra, e percorrem caminhos antes explorados por trilhas de exploração das antigas navegações. Esse cabos de 2.5 cm de diâmetro carregam os protocolos e as infraestruturas que regem a velocidade dos dados, dos transportes de informação, da codificação de mensagens. E também são vulneráveis ao grampo.

Se o caminho dos cabos da internet é tão antigo quanto o período da navegação, uma explicação de interesse sócio-econômica pode explicar por que mais de 40% da população mundial ainda não tem acesso à Internet: seus protocolos e suas infraestruturas estão concentradas e em poder de determinados governos e indústrias.

E essa concentração não é só reflexo sócio-econômico, mas também de quem são os produtores dessa tecnologia. Quando os computadores começaram a povoar as casas das famílias do Sul Global, quem eram as pessoas com poder de explorá-los? Mexer em seus cabos e circuitos, nomeá-los, ligar e desligá-los? Na minha casa, nosso primeiro computador ficava no quarto do meu irmão.

TOMADA DE CONSCIÊNCIA E RETOMADA DA TECNOLOGIA

O idioma comum das mulheres comunica a tomada de consciência histórica e patriarcal que rege nossas vidas. Mas para ser uma tomada de consciência, é também necessário ser interseccional, e explorar também suas raízes de classe, raça e geografia. Olhamos para nosso mapa, para nossa história, e compartilhamos de técnicas e tecnologias para transformar nossas realidades.

Enquanto o Sul Global, esse espaço sócio-econômico que inclui a Ásia (com exceção de Japão, Hong Kong, Macau, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan), América Central, América do Sul, Mexico, Africa, e o Oriente Médio (com exceção de Israel)”, têm uma porcentagem menor de sua população com acesso à Internet, em relação aos países do Norte Global; assim como tem visivelmente menos backbones (cabos submarinos) da rede mundial da Internet que o Norte global (acompanhe neste link em tempo os cabos submarinos de todo o mundo), nosso irmão rico e prepotente, não tem só a prevalência na transmissão dos dados, assim como na sua vigilância e com poder de censura.

Para mudar esse cenário, precisamos retomar a tecnologia – uma noção comum que permeia o feminismo tecnológico há algumas décadas, mas que também se reflete nas bibliografias feministas acadêmicas, quando lemos que as mulheres precisam ocupar os espaços de escrita, de produção científica, de política, entre outros espaços dominados por homens; e principalmente, criados sobre uma lógica de guerra e exploração. “Cyborg writing is about the power to survive, not on the basis of original innocence, but on the basis of seizing the tools to mark the world that marked them as other”, escreveu Donna Haraway.

Mas sabemos também que não queremos que nossos protocolos e nossas infraestruturas sejam baseados na guerra, tampouco que o caminho de nossos dados seja o colonial. Não queremos chegar no mesmo lugar, queremos navegar por outros caminhos, chegar em lugares não navegados, que tenham em sua base outras razões, que não a guerra.

“Sem uma ética do amor moldando a direção de nossa visão política e nossas aspirações radicais, muitas vezes somos seduzidas/os, de uma maneira ou de outra, para dentro de sistemas de dominação — imperialismo, sexismo, racismo, classismo”.

bell hooks, O Amor como Prática para a Liberdade

O idioma comum das mulheres é saber que nossos corpos são uma disputa de dominação, desde sua superficialidade à nossas mentes, e saber, também, que somos resistência. Uma resistência que não é baseada na guerra, mas na transformação de um mundo que construímos coletivamente. Desde as arpilleras a la huelga feminista, contamos e fazemos história e tecnologia.